domingo, 21 de março de 2010

A IGREJA E O ESPIRITISMO DIANTE DA FÉ E DA RAZÃO




A IGREJA E O ESPIRITISMO DIANTE DA FÉ E DA RAZÃO


A

origem da palavra encíclica, etimologicamente falando, remonta às “cartas circulares’ enviadas pelos bispos a colegas de uma mesma região, para assegurar unidade doutrinal.

“A partir de Bento 14, em sua ‘Epistola Encyclica commonitoria ad omnes episcopos’ (Carta circular de advertência a todos os bispos), de 3 de dezembro de 1740, esse termo se restringiu às mensagens dirigidas pelo papa, em forma de carta, a toda a Igreja Católica, ‘aos patriarcas primazes, arcebispos, bispos e outros ordinários (comuns) em paz e em comunhão com a Sé apostólica’. As encíclicas pertencem ao gênero das ‘cartas apostólicas’, distinguindo-se, porém, pela universalidade de seus destinatários.

“O texto oficial das encíclicas é publicado em latim nos ‘Acta Apostolicae Sedis’ (Atos da Sé Apostólica). Também é publicado no diário ‘Osservatore Romano’ (Observador Romano), que, às vezes, publica simultaneamente a tradução italiana oficial.

“O título das encíclicas, também em latim, é tirado das primeiras palavras do texto oficial. Desde Gregório 16 (1831-1846), por meio das encíclicas é possível acompanhar a história da Igreja Católica.”[1]

Pois bem, para marcar o vigésimo aniversário de seu pontificado, ocorrido no dia 15 de outubro de 1998, o papa João Paulo 2º lançou a encíclica Fides et Ratio (“Fé e Razão”), na qual, entre outras coisas, critica o caráter pluralista da filosofia atual e busca uma saída para a ‘crise de sentido’ do homem moderno.

De acordo com a referida matéria da “Folha de São Paulo”, a “encíclica ‘Fides et Ratio’ (Fé e Razão) examina a relação entre filosofia e teologia, de Platão até o presente, e exorta pensadores seculares a refletir sobre os grandes temas metafísicos que a filosofia contemporânea praticamente abandonou.

“O Homo sapiens pode ser definido como uma criatura que deseja saber, diz o papa. Os seres humanos querem respostas a perguntas como: Quem sou eu? De onde eu vim? Para onde vou? Por que o mal existe? O que há depois da morte?

“Mas os filósofos pararam de fazer essas perguntas. Em vez de se preocupar com questões relativas ao ‘ser’, eles agora se concentram no ‘saber’ e se restringem a áridas especulações sobre o significado da linguagem ou mesmo sobre o significado do significado.

“Tudo isso é parte da ‘crise de sentido’ do homem moderno. Em um mundo onde o conhecimento é cada vez mais fragmentado, a busca de sentido parece difícil e muitas vezes infrutíferas.”

Essas passagens representam verdadeiro e inegável progresso da Igreja Católica diante da realidade do mundo atual, no qual não existe mais espaço para qualquer proposta de fé cega, sem raciocínio.

Entretanto, o papa teve uma “recaída dogmática” ao asseverar em sua nova encíclica que é “dever da igreja indicar os elementos de um sistema filosófico que são incompatíveis com a fé da igreja. De fato, muitas opiniões filosóficas — acerca de Deus, do ser humano, da liberdade humana e do comportamento ético — entram em confronto direto com a igreja, porque se referem à verdade revelada da qual esta é a guardiã”. De fato, podemos questionar quem atribuiu à igreja o suposto cargo de “guardiã da verdade revelada” e por que apenas os seus conceitos acerca de Deus, do ser humano, da liberdade humana e do comportamento ético são corretos? Isto é um retrocesso ao dogma Fora da igreja não há salvação, totalmente superado pela máxima Fora da caridade não há salvação, proposto pela Doutrina Espírita, como veremos em seguida.

A posição do Espiritismo — É lamentável que o papa não tenha dedicado uma linha sequer à filosofia espírita, porquanto o Espiritismo poderia oferecer-lhe preciosos elementos para a necessária abolição dos dogmas católicos. Com efeito, continuando com o nosso propósito de pesquisar assuntos de interesse geral nas obras de Allan Kardec, retiramos da Revista Espírita e de O Evangelho segundo o Espiritismo as respostas para as seguintes indagações:

P. Qual a distinção entre a máxima “Fora da caridade não há salvação” e o dogma “Fora da Igreja não há salvação”?

R. “Enquanto a máxima — Fora da caridade não há salvação — assenta num princípio universal e abre a todos os filhos de Deus acesso à suprema felicidade, o dogma — Fora da Igreja não há salvação — se estriba, não na fé fundamental em Deus e na imortalidade da alma, fé comum a todas as religiões, porém numa fé especial, em dogmas particulares; é exclusivo e absoluto. Longe de unir os filhos de Deus, separa-os; em vez de incitá-los ao amor de seus irmãos, alimenta e sanciona a irritação entre sectários dos diferentes cultos que reciprocamente se consideram malditos na eternidade, embora sejam parentes e amigos esses sectários. Desprezando a grande lei de igualdade perante o túmulo, ele os afasta uns dos outros, até no campo do repouso. A máxima — Fora da caridade não há salvação consagra o princípio da igualdade perante Deus e da liberdade de consciência. Tendo-a por norma, todos os homens são irmãos e, qualquer que seja a maneira por que adorem o Criador, eles se estendem as mãos e oram uns pelos outros. Com o dogma — Fora da Igreja não há salvação, anatematizam-se e se perseguem reciprocamente, vivem como inimigos; o pai não pede pelo filho, nem o filho pelo pai, nem o amigo pelo amigo, desde que se considerem condenados sem remissão. É, pois, um dogma essencialmente contrário aos ensinamentos do Cristo e à lei evangélica.”

P. E o que significa a expressão “Fora da verdade não há salvação”?

R. “Fora da verdade não há salvação equivaleria ao Fora da Igreja não há salvação e seria igualmente exclusivo, porquanto nenhuma seita existe que não pretenda ter o privilégio da verdade. Que homem se pode vangloriar de a possuir integral, quando o âmbito dos conhecimentos incessantemente se alarga e todos os dias se retificam as idéias? A verdade absoluta é patrimônio unicamente de Espíritos da categoria mais elevada e a Humanidade terrena não poderia pretender possuí-la, porque não lhe é dado saber tudo. Ela somente pode aspirar a uma verdade relativa e proporcionada ao seu adiantamento. Se Deus houvera feito da posse da verdade absoluta condição expressa da felicidade futura, teria proferido uma sentença de proscrição geral, ao passo que a caridade, mesmo na sua mais ampla acepção, podem todos praticá-la. O Espiritismo, de acordo com o Evangelho, admitindo a salvação para todos, independente de qualquer crença, contando que a lei de Deus seja observada, não diz: Fora do Espiritismo não há salvação; e, como não pretende ensinar ainda toda a verdade, também não diz: Fora da verdade não há salvação, pois que esta máxima separaria em lugar de unir e perpetuaria os antagonismos.”

P. O Espiritismo é, como pensam alguns, uma nova fé cega substituindo a outra fé cega?

R. “Para o crer, é preciso ignorar os seus primeiros elementos. Com efeito, o Espiritismo estabelece como princípio que antes de crer é preciso compreender. Ora, para compreender há que usar o raciocínio. Por isto, procura dar-se conta de tudo antes de nada admitir, a saber, o porque e o como de cada coisa. Assim, os espíritas são mais céticos do que muitos outros, em relação aos fenômenos que escapam do círculo das observações habituais. Não repousa em nenhuma teoria preconcebida ou hipotética, mas na experiência e na observação; em vez de dizer: ‘Crede, para começar, e depois compreendereis, se puderdes’, diz: ‘Compreendei, para começar, e depois crereis, se quiserdes’. Não se impõe a ninguém; diz a todos: ‘Vede, observai, comparai e vinde a nós livremente, se vos convier.’ Falando assim, ele entra nas camadas e corre as chances da concorrência. Se muitos vão a ele, é porque os satisfaz, mas ninguém o aceita de olhos fechados. Aos que não o aceitam, ele diz: ‘Sois livres e não vos quero; tudo o que vos peço é que me deixeis minha liberdade, como vos deixo a vossa. Se procurais destruir-me, por medo de que vos suplante, é que não estais muito seguros de vós mesmos.”

P. Como será a fé para a nova geração?

R. “Um dos caracteres distintivos da nova geração será a fé inata; não a fé exclusiva e cega, que divide os homens, mas a fé raciocinada, que esclarece e fortifica, que os une e confunde num comum sentimento de amor a Deus e ao próximo. Com a geração que se extingue desaparecerão os últimos vestígios da incredulidade e do fanatismo, igualmente contrários ao progresso moral e social.

“O Espiritismo é a via que conduz à renovação, porque arruina os dois maiores obstáculos que a ela se opõem: a incredulidade e o fanatismo. Dá uma fé sólida e esclarecida; desenvolve todos os sentimentos e todas as idéias que correspondem às vistas da nova geração. Por isto é como que inato e em estado de intuição no coração de seus representantes. A era nova vê-lo-á, pois, crescer e prosperar pela mesma força das coisas. Tornar-se-á a base de todas as crenças, o ponto de apoio de todas as instituições.”

Conclusão — Para que se entenda melhor a situação da fé dentro do contexto católico, recordemos um episódio do qual teria participado Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona, ocasião em que ficou conhecido pela defesa intransigente que fazia da Igreja Ortodoxa.

Consta que certa feita Santo Agostinho explicava para alguns fiéis que Deus, em determinado momento, criou o mundo a partir do nada, interpretando literalmente o texto da Gênesis bíblica. Quando terminou de falar, um discípulo mais esperto perguntou ao bispo: “— Senhor bispo, se Deus criou o mundo em um determinado momento, o que ele estava fazendo antes?” Santo Agostinho pensou um pouco e respondeu: “— Meu filho, antes de criar o mundo, Deus estava muito ocupado, criando, com riqueza de detalhes, o inferno, com suas chamas eternas, demônios e capetas com tridentes, caldeirões ferventes e todos aqueles atemorizantes instrumentos de tortura, para onde são enviados indivíduos curiosos como você, que ousam fazer perguntas dessa natureza!”

Diante disso e do conteúdo da encíclica Fides et Ratio do papa João Paulo 2º, é inegável que o pensamento católico evoluiu muito, mas não o suficiente para deixar de pretender que um suposto cargo de “guardiã da verdade revelada” lhe daria autoridade para “indicar os elementos de um sistema filosófico que são incompatíveis com a sua fé.”

Foi por fatos semelhantes a esse que Allan Kardec afirmou que é “principalmente contra essa fé que se levanta o incrédulo, e dela é que se pode, com verdade, dizer que não se prescreve. Não admitindo provas, ela deixa dúvida. A fé raciocinada, por se apoiar nos fatos e na lógica, nenhuma obscuridade deixa. A criatura então crê, porque tem certeza, e ninguém tem certeza senão porque compreendeu. Eis porque não se dobra. Fé inabalável só é a que pode encarar de frente a razão, em todas as épocas da Humanidade.

“A esse resultado conduz o Espiritismo, pelo que triunfa da incredulidade, sempre que não encontra oposição sistemática e interessada.”

Nota. A presente pesquisa foi realizada nas seguintes obras:

KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 82ª ed., Rio de Janeiro, FEB, 1981, Trad. Guillon Ribeiro, p. 260-261 e 317.

————. Revista Espírita - Jornal de estudos psicológicos. São Paulo, Edicel, s/d, Trad. Júlio Abreu Filho, Abril de 1862, Outubro de 1866 e Fevereiro de 1867.

o —



[1] Conforme matéria publicada no jornal “Folha de São Paulo”, edição de 16/10/98, 1º Caderno Folha mundo, p. 9-10.


A

origem da palavra encíclica, etimologicamente falando, remonta às “cartas circulares’ enviadas pelos bispos a colegas de uma mesma região, para assegurar unidade doutrinal.

“A partir de Bento 14, em sua ‘Epistola Encyclica commonitoria ad omnes episcopos’ (Carta circular de advertência a todos os bispos), de 3 de dezembro de 1740, esse termo se restringiu às mensagens dirigidas pelo papa, em forma de carta, a toda a Igreja Católica, ‘aos patriarcas primazes, arcebispos, bispos e outros ordinários (comuns) em paz e em comunhão com a Sé apostólica’. As encíclicas pertencem ao gênero das ‘cartas apostólicas’, distinguindo-se, porém, pela universalidade de seus destinatários.

“O texto oficial das encíclicas é publicado em latim nos ‘Acta Apostolicae Sedis’ (Atos da Sé Apostólica). Também é publicado no diário ‘Osservatore Romano’ (Observador Romano), que, às vezes, publica simultaneamente a tradução italiana oficial.

“O título das encíclicas, também em latim, é tirado das primeiras palavras do texto oficial. Desde Gregório 16 (1831-1846), por meio das encíclicas é possível acompanhar a história da Igreja Católica.”[1]

Pois bem, para marcar o vigésimo aniversário de seu pontificado, ocorrido no dia 15 de outubro de 1998, o papa João Paulo 2º lançou a encíclica Fides et Ratio (“Fé e Razão”), na qual, entre outras coisas, critica o caráter pluralista da filosofia atual e busca uma saída para a ‘crise de sentido’ do homem moderno.

De acordo com a referida matéria da “Folha de São Paulo”, a “encíclica ‘Fides et Ratio’ (Fé e Razão) examina a relação entre filosofia e teologia, de Platão até o presente, e exorta pensadores seculares a refletir sobre os grandes temas metafísicos que a filosofia contemporânea praticamente abandonou.

“O Homo sapiens pode ser definido como uma criatura que deseja saber, diz o papa. Os seres humanos querem respostas a perguntas como: Quem sou eu? De onde eu vim? Para onde vou? Por que o mal existe? O que há depois da morte?

“Mas os filósofos pararam de fazer essas perguntas. Em vez de se preocupar com questões relativas ao ‘ser’, eles agora se concentram no ‘saber’ e se restringem a áridas especulações sobre o significado da linguagem ou mesmo sobre o significado do significado.

“Tudo isso é parte da ‘crise de sentido’ do homem moderno. Em um mundo onde o conhecimento é cada vez mais fragmentado, a busca de sentido parece difícil e muitas vezes infrutíferas.”

Essas passagens representam verdadeiro e inegável progresso da Igreja Católica diante da realidade do mundo atual, no qual não existe mais espaço para qualquer proposta de fé cega, sem raciocínio.

Entretanto, o papa teve uma “recaída dogmática” ao asseverar em sua nova encíclica que é “dever da igreja indicar os elementos de um sistema filosófico que são incompatíveis com a fé da igreja. De fato, muitas opiniões filosóficas — acerca de Deus, do ser humano, da liberdade humana e do comportamento ético — entram em confronto direto com a igreja, porque se referem à verdade revelada da qual esta é a guardiã”. De fato, podemos questionar quem atribuiu à igreja o suposto cargo de “guardiã da verdade revelada” e por que apenas os seus conceitos acerca de Deus, do ser humano, da liberdade humana e do comportamento ético são corretos? Isto é um retrocesso ao dogma Fora da igreja não há salvação, totalmente superado pela máxima Fora da caridade não há salvação, proposto pela Doutrina Espírita, como veremos em seguida.

A posição do Espiritismo — É lamentável que o papa não tenha dedicado uma linha sequer à filosofia espírita, porquanto o Espiritismo poderia oferecer-lhe preciosos elementos para a necessária abolição dos dogmas católicos. Com efeito, continuando com o nosso propósito de pesquisar assuntos de interesse geral nas obras de Allan Kardec, retiramos da Revista Espírita e de O Evangelho segundo o Espiritismo as respostas para as seguintes indagações:

P. Qual a distinção entre a máxima “Fora da caridade não há salvação” e o dogma “Fora da Igreja não há salvação”?

R. “Enquanto a máxima — Fora da caridade não há salvação — assenta num princípio universal e abre a todos os filhos de Deus acesso à suprema felicidade, o dogma — Fora da Igreja não há salvação — se estriba, não na fé fundamental em Deus e na imortalidade da alma, fé comum a todas as religiões, porém numa fé especial, em dogmas particulares; é exclusivo e absoluto. Longe de unir os filhos de Deus, separa-os; em vez de incitá-los ao amor de seus irmãos, alimenta e sanciona a irritação entre sectários dos diferentes cultos que reciprocamente se consideram malditos na eternidade, embora sejam parentes e amigos esses sectários. Desprezando a grande lei de igualdade perante o túmulo, ele os afasta uns dos outros, até no campo do repouso. A máxima — Fora da caridade não há salvação consagra o princípio da igualdade perante Deus e da liberdade de consciência. Tendo-a por norma, todos os homens são irmãos e, qualquer que seja a maneira por que adorem o Criador, eles se estendem as mãos e oram uns pelos outros. Com o dogma — Fora da Igreja não há salvação, anatematizam-se e se perseguem reciprocamente, vivem como inimigos; o pai não pede pelo filho, nem o filho pelo pai, nem o amigo pelo amigo, desde que se considerem condenados sem remissão. É, pois, um dogma essencialmente contrário aos ensinamentos do Cristo e à lei evangélica.”

P. E o que significa a expressão “Fora da verdade não há salvação”?

R. “Fora da verdade não há salvação equivaleria ao Fora da Igreja não há salvação e seria igualmente exclusivo, porquanto nenhuma seita existe que não pretenda ter o privilégio da verdade. Que homem se pode vangloriar de a possuir integral, quando o âmbito dos conhecimentos incessantemente se alarga e todos os dias se retificam as idéias? A verdade absoluta é patrimônio unicamente de Espíritos da categoria mais elevada e a Humanidade terrena não poderia pretender possuí-la, porque não lhe é dado saber tudo. Ela somente pode aspirar a uma verdade relativa e proporcionada ao seu adiantamento. Se Deus houvera feito da posse da verdade absoluta condição expressa da felicidade futura, teria proferido uma sentença de proscrição geral, ao passo que a caridade, mesmo na sua mais ampla acepção, podem todos praticá-la. O Espiritismo, de acordo com o Evangelho, admitindo a salvação para todos, independente de qualquer crença, contando que a lei de Deus seja observada, não diz: Fora do Espiritismo não há salvação; e, como não pretende ensinar ainda toda a verdade, também não diz: Fora da verdade não há salvação, pois que esta máxima separaria em lugar de unir e perpetuaria os antagonismos.”

P. O Espiritismo é, como pensam alguns, uma nova fé cega substituindo a outra fé cega?

R. “Para o crer, é preciso ignorar os seus primeiros elementos. Com efeito, o Espiritismo estabelece como princípio que antes de crer é preciso compreender. Ora, para compreender há que usar o raciocínio. Por isto, procura dar-se conta de tudo antes de nada admitir, a saber, o porque e o como de cada coisa. Assim, os espíritas são mais céticos do que muitos outros, em relação aos fenômenos que escapam do círculo das observações habituais. Não repousa em nenhuma teoria preconcebida ou hipotética, mas na experiência e na observação; em vez de dizer: ‘Crede, para começar, e depois compreendereis, se puderdes’, diz: ‘Compreendei, para começar, e depois crereis, se quiserdes’. Não se impõe a ninguém; diz a todos: ‘Vede, observai, comparai e vinde a nós livremente, se vos convier.’ Falando assim, ele entra nas camadas e corre as chances da concorrência. Se muitos vão a ele, é porque os satisfaz, mas ninguém o aceita de olhos fechados. Aos que não o aceitam, ele diz: ‘Sois livres e não vos quero; tudo o que vos peço é que me deixeis minha liberdade, como vos deixo a vossa. Se procurais destruir-me, por medo de que vos suplante, é que não estais muito seguros de vós mesmos.”

P. Como será a fé para a nova geração?

R. “Um dos caracteres distintivos da nova geração será a fé inata; não a fé exclusiva e cega, que divide os homens, mas a fé raciocinada, que esclarece e fortifica, que os une e confunde num comum sentimento de amor a Deus e ao próximo. Com a geração que se extingue desaparecerão os últimos vestígios da incredulidade e do fanatismo, igualmente contrários ao progresso moral e social.

“O Espiritismo é a via que conduz à renovação, porque arruina os dois maiores obstáculos que a ela se opõem: a incredulidade e o fanatismo. Dá uma fé sólida e esclarecida; desenvolve todos os sentimentos e todas as idéias que correspondem às vistas da nova geração. Por isto é como que inato e em estado de intuição no coração de seus representantes. A era nova vê-lo-á, pois, crescer e prosperar pela mesma força das coisas. Tornar-se-á a base de todas as crenças, o ponto de apoio de todas as instituições.”

Conclusão — Para que se entenda melhor a situação da fé dentro do contexto católico, recordemos um episódio do qual teria participado Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona, ocasião em que ficou conhecido pela defesa intransigente que fazia da Igreja Ortodoxa.

Consta que certa feita Santo Agostinho explicava para alguns fiéis que Deus, em determinado momento, criou o mundo a partir do nada, interpretando literalmente o texto da Gênesis bíblica. Quando terminou de falar, um discípulo mais esperto perguntou ao bispo: “— Senhor bispo, se Deus criou o mundo em um determinado momento, o que ele estava fazendo antes?” Santo Agostinho pensou um pouco e respondeu: “— Meu filho, antes de criar o mundo, Deus estava muito ocupado, criando, com riqueza de detalhes, o inferno, com suas chamas eternas, demônios e capetas com tridentes, caldeirões ferventes e todos aqueles atemorizantes instrumentos de tortura, para onde são enviados indivíduos curiosos como você, que ousam fazer perguntas dessa natureza!”

Diante disso e do conteúdo da encíclica Fides et Ratio do papa João Paulo 2º, é inegável que o pensamento católico evoluiu muito, mas não o suficiente para deixar de pretender que um suposto cargo de “guardiã da verdade revelada” lhe daria autoridade para “indicar os elementos de um sistema filosófico que são incompatíveis com a sua fé.”

Foi por fatos semelhantes a esse que Allan Kardec afirmou que é “principalmente contra essa fé que se levanta o incrédulo, e dela é que se pode, com verdade, dizer que não se prescreve. Não admitindo provas, ela deixa dúvida. A fé raciocinada, por se apoiar nos fatos e na lógica, nenhuma obscuridade deixa. A criatura então crê, porque tem certeza, e ninguém tem certeza senão porque compreendeu. Eis porque não se dobra. Fé inabalável só é a que pode encarar de frente a razão, em todas as épocas da Humanidade.

“A esse resultado conduz o Espiritismo, pelo que triunfa da incredulidade, sempre que não encontra oposição sistemática e interessada.”



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