SAUDADE GOSTOSA DE SENTIR
Vinte
minutos depois que pedi a minha colega de trabalho que parasse de
averiguar os sinais vitais do paciente, lá estava eu, de pé,
completamente imóvel, diante daquele leito.
Um
sentimento dolorido misturava-se com meu ser frustrado e deprimido pela
morte daquele homem. Jamais vivi qualquer outra experiência como
aquela.
Averiguar
sinais vitais naquele momento, vendo aquele paciente em seu estado
terminal, era algo desnecessário. Quando olhei para o médico de plantão,
ele sinalizou de longe informando que nada mais havia a ser feito. Era
um senhor de quase 88 anos de idade e a probabilidade de prolongar a
vida diante de seu quadro, era mínima.
Aquele
homem era meu vizinho e amigo há vários anos, ou melhor, desde minha
infância, para ser mais precisa. Procurei superar minhas emoções e fiz
tudo para prestar-lhe os últimos cuidados paliativos. Foi difícil.
Construí com ele uma conexão diferente de qualquer outra estabelecida com as demais pessoas, até mesmo da minha idade.
Nunca
falamos abertamente sobre sua sexualidade. Desde criança sempre
observei que ele se portava de modo diferente. Ao invés de mulheres,
eram homens quem o visitava sempre. Cresci e aos poucos fui entendendo
melhor a situação.
Naquela
época, o preconceito já existia. Minha mãe nunca conseguiu entendeu
essa minha conexão com ele. Ele era extremamente inteligente e eu muito
curiosa. Tínhamos conversas diversificadas e a cada dia eu aprendia algo
novo. Ele gostava muito de ler e de contar histórias. E eu ficava horas
a ouvi-lo.
À medida que ia crescendo, ia entendendo seus valores, sua vida e seus amores. Entre eles, estava seu belo jardim.
Passados
muitos anos, seguindo minha vida, com meus acertos e desacertos,
compartilhava com ele meus dias de alegria, como também minhas
tristezas, raivas e tédios que a vida me impunha.
Um
certo dia, num dos meus dias de tédio, ficamos conversando até mais
tarde. Falamos de tudo um pouco, de família, de amizade de amores,
guerras e, principalmente, de solidão.
Durante
todos esses anos meu amigo sempre viveu sozinho. Desde que o conheci,
nunca fiquei sabendo que um único parente tenha lhe visitado.
Como
profissional de saúde, a vida me ensinou muito. Sempre ouvi pessoas
falarem de seus medos e o maior deles era o de envelhecerem e morrerem
sozinhas.
Vejo
esse medo a todo momento nos olhos dos pacientes e dos seus familiares.
E, acabo vendo nos meus próprios olhos o mesmo medo que existe em
todos... Por quê? Vocês, leitores, acham que as pessoas que lidam com a
morte todos os dias não sentem medo? Ah, como sentem!
Durante
muito tempo trabalhei e assisti a pessoas que viveram completamente
sozinhas, dia após dia, amargando a solidão e seus sofrimentos. E este
era mais um caso, só que nele havia um agravante: o meu grande amigo era
gay. Talvez, por sua opção sexual tenha sido completamente abandonado
por seus familiares. Nem amigos com que contar, ele tinha.
Numa
cama fria de um hospital público ele viveu os últimos momentos de sua
vida. E tudo fiz para aliviar suas dores físicas. Porém, contra as dores
da alma, nada consegui fazer para aliviá-las. Havia muita tristeza em
seus olhos e isto me doía, pois, conhecia sua trajetória de vida
solitária. E, naquele momento, respeitando os princípios da ética
profissional, não poderia me deixar levar pelas emoções. Tinha que ser a
profissional e não a amiga que ele tanto precisava.
Fui
pega de surpresa no plantão. Jamais imaginei que o paciente que acabara
de chegar à emergência do hospital se tratava de meu grande amigo.
Consciente,
ele tinha a certeza da morte. A cada momento, em que a porta da sala se
abria, ele direcionava o seu olhar, na esperança de ver uma simples
visita. Mas, nada. Somente nós da enfermaria e o médico plantonista,
fomos seus 'visitantes'.
Ali,
mergulhada em meus pensamentos, procurei reconstruir algumas cenas da
vida e vivenciar novamente alguns de nossos momentos felizes.
O
homem inteligente, que conhecia grande parte do mundo, que falava de
coisas belas, já não existia. Em seu lugar, um corpo velho consumido
pelo tempo, era o que restava.
Após
seu último suspiro, ele não apresentava um rosto triste. A tristeza que
havia estado por longos anos ao seu lado, havia sumido. Ele parecia
sorrir. Uma luz, ao longe, iluminava o seu rosto negro e magro.
Com esforços, reuni todas as minhas forças, recompôs-me com o choque e sai.
Mais
de dez anos já se passaram. Hoje, eu não quero lembrar a fisionomia que
ele apresentava naquele dia antes de sua morte. Quero lembrar-me do seu
sorriso, do seu rosto, dos anos anteriores. O rosto do paciente que
assisti naquela tarde de uma quinta feira, perdeu-se com o passar do
tempo. É o que restou foram as belas lembranças, a certeza de que
existiu uma amizade verdadeira e pura que o tempo se encarregou de
transformar numa saudade gostosa de sentir.
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