Inveja. Eis um dos
sentimentos mais torpes e difíceis de serem eliminados da alma humana.
Trata-se de um dos vícios que mais causa sofrimento à humanidade. Onde
houver apego à materialidade das coisas, notadamente em seu significado,
naquilo que o objeto de desejo simboliza em termos de bem-estar e
status quo, aí estará a inveja, sobrevoando os pensamentos mais íntimos
qual urubu ou abutre insaciável, esfomeado pela carniça. A cobiça é o
seu moto-contínuo.
Há pessoas que se colocam como cães de guarda,
sempre alertas ao menor ruído. Basta alguém se destacar em alguma área,
por mais ínfima que seja e lá estará o invejoso, pronto para apontar o
dedo e tentar minimizar o feito de seu próximo. Uma roupa diferente, um
calçado da moda ou mesmo um brico ou pulseira bem colocados, já torna-se
motivo para elogios, nem sempre sinceros. As mulheres, e que me perdoem
as mulheres, elas são pródigas nesse tipo de expediente.
COBIÇA E BEM-ESTAR
Torna-se
necessário, contudo, diferenciar a inveja, a cobiça, da busca do
bem-estar. Não há nada de errado em trabalhar para se conquistar o
conforto necessário à subsistência e às condições materiais
imprescindíveis, visando o aprimoramento e a eficiência em determinada
atividade, sem causar prejuízo ao próximo. Se alguém possui um objeto ou
uma virtude que nos falta, desejá-los com humildade e sinceridade não é
inveja.
Todavia ela surge, graciosa e sedutora, quando sentimos
uma sensação de perda, um vazio não preenchido pelo objeto de desejo,
principalmente quando, numa formulação mental mesquinha e destrutiva,
nos consideramos muito mais dignos do que aquele que possui o que não
temos.
902. É repreensível cobiçar a riqueza com o desejo de praticar o bem?
—
O sentimento é louvável, sem dúvida, quando puro. Mas esse desejo é
sempre bastante desinteressado? Não trará oculta uma segunda intenção
pessoal? A primeira pessoa a quem se deseja fazer o bem não será muitas
vezes a nossa? (O Livro dos Espíritos - Ed. LAKE)
A acepção desta
pequena palavra, contida no dicionário Aurélio, é deveras interessante.
“Desgosto ou pesar pelo bem ou pela felicidade de outrem. Desejo
violento de possuir o bem alheio.” Os Espíritos que perturbam a nossa
relativa felicidade, erroneamente chamados de obsessores, a fim de nos
ver nivelados ao seu estado de inferioridade moral, agem movidos pela
inveja.
Invejosos eram os fariseus e os saduceus na época de
Jesus de Nazaré. Invejoso foi Judas. E Barrabás, ao se ressentir do
carisma que o mestre possuía naturalmente em profusão, sem precisar
lançar mão de artifícios, poses e posturas afetadas, às vezes até
necessárias para um político profissional.
Quantos reis e rainhas
não foram massacrados, mortos em circunstâncias misteriosas, efeito
direto dessa viciação moral? A chamada “puxada de tapete”, que ocorre
nas empresas, nos vários locais de trabalho, inclusive na família e onde
quer que se reúnam pessoas, sempre acontece sob inspiração desse vício
hediondo e asqueroso.
TRIO DE FERRO
A vaidade e o
orgulho, esses dois gigantes da imoralidade, filhos diletos do egoísmo,
combinados proporcionalmente com a inveja, formam um trio de ferro
corrosivo, uma espécie de três mosqueteiros às avessas. Um triunvirato
repugnante e nauseabundo, espécie de tríade repulsiva e sinistra.
Se
nos consideramos mais merecedores do que o próximo que tenha aquele
belo carro do ano, imaginando que seria mais “justo” que aquele objeto
fosse de nossa propriedade, essa fantasia traz consigo um ranço de
origem, proporcionado pela inveja.
Em função desse sentimento
mesquinho, muitos grupos espíritas se dividem (aliás, o movimento
espírita cresce mais por divisão do que por uma multiplicação
previamente planejada) na busca tresloucada de espaços de trabalho, na
direção de determinadas atividades, no exercício do poder. É muito comum
vermos subgrupos dentro de um mesmo grupo, a popular panelinha, um tipo
de trincheira, um gueto mesmo, que se arma contra os que conquistaram,
ao longo do tempo, o seu espaço por mérito moral e intelectual.
Esses
grupelhos promovem fofocas, queimam pessoas, malham as legítimas
lideranças como se fossem Judas, desmerecem o trabalho realizado e
promovem intrigas. Tudo por inveja. Não há dor de cotovelo que suporte o
sucesso alheio. É por isso que a cobiça, a avidez desmesurada e
destrutiva proporcionam um quadro de morbidez e infelicidade para aquele
que se alimenta desse sentimento maligno.
O INVEJOSO EM AÇÃO
O
invejoso não suporta ver um novato invadir espaços que ele, em sua
santa indolência, deixou de ocupar por pura incompetência e comodismo.
Se sente atingido, usurpado e se agarra, com unhas e dentes, ao espaço
que ele acha que é seu e somente seu. Uma sutileza interessante, já que o
homem pré-histórico, movido pelo instinto brutal, destroçava o seu
algoz, a fim de se apropriar de seus pertences. O tempo passou, a
evolução se processou como convém à estrutura das leis naturais, mas o
princípio permanece o mesmo.
O invejoso passa para o boicote, vai
minando com fofocas e pequenas atitudes estrategicamente montadas, a
fim de destruir o novo trabalhador da Doutrina. Quer provar, ao menos
para si mesmo, que o espaço é dele, e somente dele.
Do
micro-universo do centro à macro-estrutura do movimento espírita,
acontece, analogamente, a mesma situação. Os burocratas do Espiritismo
brasileiro, cercados por seus porta-vozes, asseclas e
pseudo-intelectuais, se arrepiam só em pensar na perda do poder. Quando
algum grupo surge, contestando sua concepção doutrinária e seus
esquemas, tratam logo de persegui-lo, taxando-o de antro de obsedados,
de anti-fraternos, anti-espíritas etc.
Não dá para negar que
muitos até escrevem livros atacando esses grupos, se esmeram na
elaboração de artigos e fazem palestras, movidos pela boa intenção. Mas
será que, no fundo, não há também uma razoável dose de inveja do vigor
da juventude intelectual e moral que, inevitavelmente, agride os
indiferentes?
INSTINTO DEGENERADO
A inveja é uma
das facetas do instinto de destruição degenerado, estagnado, pois ela
conduz o invejoso ao extermínio, ao transtorno e à ruína de si mesmo.
“Puxa, que belo quadro, gostaria de tê-lo pintado!”
“Que livro interessante, desejaria tê-lo escrito!”
“Caramba, que sacada, por que não tive essa idéia antes!”
Se
o sentimento de surpresa diante de uma obra, de um feito ou de uma rara
virtude for digno e generoso, não há inveja. Trata-se apenas de um
incentivo, um grande estímulo para que nos empenhemos em adquirir novas
virtudes, produzir quadros mais belos se formos artistas, textos mais
requintados se formos escritores, tortas mais saborosas se formos um
mestre-cuca.
O Espiritismo nos ensina que as pessoas que agem de
modo desinteressado, com benevolência e ternura, de forma natural, sem
afetações, sem hipocrisia, são como velhos guerreiros que no passado já
autoconstruiram e conquistaram sua grandeza moral. Ter o desejo de se
comportar como essas pessoas não é inveja. Se fosse, seria uma inveja
deveras singular.
Daí que o modelo de virtude eleito pelo
Espiritismo, Jesus de Nazaré, torna-se ao menos para nós, ocidentais,
uma referência longínqua e ao mesmo tempo muito próxima, uma baliza, um
marco para a busca necessária da virtude, de uma ética condizente com as
leis naturais.
A VIRTUDE
Segundo Platão e
Sócrates, virtude não se ensina. A virtude (aretê) nada tem de
opiniático. Trata-se de um dom ofertado por Deus, segundo a concepção
socrática. Mas virtude é conhecimento, e como tal, segundo os gregos,
não pode ser ensinada. Ou seja, não é uma técnica, um conhecimento
formal, que possua o mesmo sentido lógico e racional de uma equação
matemática ou mesmo de um teorema. Esse aforismo conhecer a si mesmo, a
grande máxima inscrita no Templo de Delfos e adotada por Sócrates, é um
dos fundamentos de sua doutrina.
Com Sócrates e Platão
entendemos que aprender é recordar, relembrar, é rever, revisitar. Eles
eram reencarnacionistas e inauguraram uma concepção toda nova do que se
convencionou chamar de alma (psiquê), algo imponderável e que sobrevive à
matéria. Não foi à-toa que Allan Kardec os considerou, e com razão,
como precursores do Espiritismo.
Essa questão da virtude, na
história da filosofia, é uma das muitas questões ainda em aberto. Os
neo-platônicos, existencialistas, marxistas, positivistas,
neo-evolucionistas, e outros istas não se entendem em relação a essa
questão. Nem mesmo os espiritistas. Intelectuais espíritas, de
mentalidade cristã e formação religiosa, possuem pontos de vista nem
sempre compatíveis com espíritas de mentalidade laica e formação mais
filosófica e científica.
Segundo o Espiritismo, a evolução moral
nem sempre acompanha a evolução intelectual. No processo evolutivo é
necessário primeiramente o conhecimento do bem e do mal, somente
possível em função do desenvolvimento do livre-arbítrio, consequência
natural do aprimoramento intelectivo. A evolução moral é uma
consequência da evolução intelectual. “A moral e a inteligência são duas
forças que não se equilibram senão com o tempo” ( LE - p. 780-b).
A
virtude, segundo o Espiritismo, é uma qualidade primária, um atributo,
uma característica variável em função do nível evolutivo do Espírito, o
sujeito pensante, que sente, reflete e age. A virtude é uma propriedade
moral adquirida, consquistável. Segundo Kardec, “aquele que a possui a
adquiriu pelos seus esforços nas vidas sucessivas, ao se livrar pouco a
pouco das suas imperfeições” (O Evangelho Segundo o Espiritismo -
Introdução - LAKE).
Para se combater os vícios, nada melhor do
que aprimorar as virtudes, com conhecimento de causa. Aí está a chave da
questão. O ato de reprimir as viciações é sempre louvável, mas se não
vier acompanhado de um processo de autoconhecimento, de autopercepção,
não terá sentido. Sem uma atitude racional, sem o devido bom senso, o
que temos é a hipocrisia, a repressão cega e insensata com o verniz da
virtude piedosa, uma usina produtora de sepulcros caiados.
A EDUCAÇÃO
O
Espiritismo nos oferece uma compreensão racional muito bem fundamentada
na observação, na experimentação. A base de todas as viciações se acha
no abuso das paixões. “As paixões são como um cavalo que é útil quando
governado e perigoso quando governa.” (LE - p. 908).
O princípio
das paixões não é um mal. O mal está no exagero, nos excessos e nas
consequências nefastas que possam existir quando há o abuso. Segundo o
provérbio latino, “o abuso não desmerece o uso”.
A saída que o
Espiritismo propõe é a educação. Nesse sentido, podemos afirmar que, ao
contrário dos filósofos clássicos, a virtude pode ser ensinada, não no
sentido tecnológico, formal, mas como um conjunto de caracteres
passíveis de serem moralmente formatados.
O comentário de Allan
Kardec, a esse respeito, é bem elucidativo: “A educação, se for bem
compreendida, será a chave do progresso moral. Quando se conhecer a arte
de manejar os caracteres como se conhece a de manejar as inteligências,
poder-se-á endireitá-los, da mesma maneira como se endireitam plantas
novas. Essa arte, porém, requer muito tato, muita experiência e uma
profunda observação. É um grave erro acreditar que basta ter a ciência
para aplicá-la de maneira proveitosa.” (LE - p. 917)
A educação
segundo o Espiritismo é moralizante. O moralismo hipócrita não cabe em
seus princípios. A educação espírita é libertária sem ser libertina. Ela
não é religiosa; é cultural, reflexiva e tolerante.
Trabalho, solidariedade e tolerância,
o lema que Kardec adotou para si se constitui, em termos sintéticos,
numa atitude entusiasta e viril diante da vida. Sentimentos viciosos
como a inveja, o orgulho, a hipocrisia, dentre tantos outros, se esvaem,
tendem a se diluir e se reordenar diante do processo de transformação
moral que o Espiritismo propõe, na incessante busca da sabedoria e da
virtude.
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